domingo, 31 de janeiro de 2010

Uma Bela Fria




Numa Alfândega, é sempre bom estarmos preparados para tudo. Emerson é um funcionário preparado por natureza, e pelos anos de vivência em outros aeroportos. É bom que seja assim, seja com Emerson ou qualquer outro. Aqui no Fim do Mundo, recebemos, entre tantos, um voo vindo de Portugal e conexões de toda a Europa. E é certo que cada um dos duzentos e sessenta e um passageiros desse voo pode estar nos trazendo uma surpresa. Uma surpresa nem sempre agradável.

Uma bela mulher, acima de qualquer suspeita, chegando de Barcelona. Aperta o botão. A setinha que lhe acende ao topo, refletindo um escarlate difuso nas suas mechas castanho-aloiradas, parece ter algo a nos dizer. O bip, que acompanha a seta, soa numa coma abaixo de mi bemol, o que dói aos ouvidos bem treinados de um músico como Emerson. Mas ela, impassível, dirige-se tranquilamente à esteira de raios-X, como quem aguarda com as compras no caixa de saída de um supermercado.

Rosiany, uma operadora relativamente novata na época, mas nem por isso menos perspicaz, nos dá os sinais.

- Emerson, dá uma olhadinha, por favor. Parece granulado, mas não está muito nítido.

O funcionário da portaria faz sinal para a passageira pôr a mala na bancada. Emerson inspeciona cuidadosamente a bagagem, tentando não olhar para o decote generoso da moça.

- A senhora passou quanto tempo na Espanha?

- Vinte e cinco dias, senhor.

Uma conversa casual sempre acaba por aproximar seres de planetas tão diversos como o passageiro e o fiscal. E isso é importantíssimo, ajuda-nos a descobrir uma série de coisas. Mas o que Emerson iria descobrir naquele momento não estava na entrevista. Estava no fundo. Seria revelado por uma delicada incisão de um estilete. Como bom cirurgião, Emerson retira o objeto, o qual estava escondido no fundo falso da mala.

- O que vem a ser isto, senhora? - indaga Emerson, com a delicadeza de um camareiro de hotel. A bela jovem não responde, apenas contempla com ar assustado um embrulho retangular, envolto em papel carbono.

Emerson desfaz o pacote, revelando uma quantidade de papeizinhos e comprimidinhos coloridos, com cartinhas de baralho microscopicamente estampadas, além de uma massa disforme, de um cheiro estranho.

- Será que é o que estou pensando? - emenda. A moça continua em silêncio, mas faz um gesto afirmativo com a cabeça.

- Olha, a senhora não precisa ter medo de me contar o que tem aqui. Precisamos saber, afinal o que a senhora trouxe. Confie em mim.

Emerson parecia mais um psicólogo do que um fiscal. Aos poucos, a moça foi contando tudo sobre o que trazia. Mil e quinhentos comprimidos de ecstasy. Oitocentos papéis de LSD. Duzentos gramas de skank [Que, para mim, até o dia em que soube do ocorrido, não significava nada além da banda musical].

- Infelizmente a senhora está detida. Será encaminhada à polícia federal. É possível que seja presa.

Naquele momento, a mulher chorou. Fichas de telefone me parecem algo um tanto obsoleto, mas, ao que tudo indica, a dela caiu. Atuar como mula em tráfico internacional de drogas é, por definição, uma bela fria.

Emerson segue conversando com a moça, num misto de consolo e conscientização daquele indivíduo [a moça] sobre sua real situação. Tenta falar de amenidades.

- Mas e o negócio, é bom mesmo? Dá barato? Qual a sensação?

- Você fica assim: Ouuuu, ouuuuu, ouuuu. - A mulher dá voltas com o indicador em torno da orelha. Naquele instante, nem parecia que tinha acabado de receber voz de prisão.

No final, a polícia chega, chutando o balde. Agora, serão eles que entrevistarão a mulher. Nesse momento, a Alfândega sai de cena e nossos colegas policiais dão continuidade, fazendo com que seja cumprida a Lei. Emerson comparece às audiências, como testemunha do processo.

6 comentários :

Lygia disse...

Olá Joeldo!

Enfim temos movimento na Alfândega!Fico feliz em poder ler um novo texto seu, sempre tão bem escrito.
Parabéns ao Emerson. Infelizmente o que foi encontrado é uma mínima parte da desgraça que entra no pais no "lombo das mulas". Convivo bem de perto com as terríveis consequencias dessa mercadoria. Tomara conseguissemos todos, como um grande time acabar com essa doença. Melhor seriam os lindos lencinhos não acha? rsrs
Grande abraço... E não nos deixe tanto tempo sem beber de seus escritos.

Lygia

joeldo disse...

Olá meu anjo,
Como sabemos, a Alfândega exerce o seu controle por amostragem, o que significa que apenas uma pequena parcela desses entorpecentes esbarra com o caminho da Lei.
Isso não quer dizer que o crime compense. A punição exemplar desses agentes, ainda que não passem de "mulas", distintos dos verdadeiros comandantes do tráfico, é nossa esperança para que toda essa cadeia de ação possa ser desestabilizada.
Beijos
Joeldo

Tatiane MG disse...

Oi Poeta!!!
Certo juiz , em uma de suas sentenças, disse ser o crime de tráfico mais recriminável do que o homicídio. Confesso que na hora, pensei estar diante de grande absurdo, pois nada poderia ser pior do que tirar a vida de uma pessoa! Só ao terminar de ler o relatório é que compreendi o que aquele sábo juiz quiz dizer: O crime de homicídio atinge diretamente uma pessoa ( o de cujus) e indiretamente, em média, 20 pessoas (os entes). Já no crime de tráfico, o reultado é muito maior, pois um traficante atinge diretamente, em média, 10 pessoas ( que muito provalvelmente também se tornarão um de cujus) e consequentemente, 200 pessoas indiretamente.
Quanto a motivação do crime: O assassino (a maioria ) é motivado por sentimento de raiva, por ciúmes, inveja, dor etc. enquanto o traficante é motivado pela idéia de ganhar dinheiro fácil, ou seja, um motivo muito mais torpe.
Depois desta análise, passei a concordar com este sábio Juiz. Ainda penso ser injustificável tirar a vida de uma pessoa...mas é exatamente isso que fazem os traficantes!
Seus textos continuam perfeitos, divertidos e de uma leitura muito gostosa!
Espero que não fique muito tempo longe daqui!
Muitas saudades e volte logo!!
(T)

joeldo disse...

Tatiane,
O tráfico mata muito mais, porque mata em bloco, criando um verdadeiro celeiro de criminosos. É o efeito cascata.
O que fazemos, embora em pequena escala, é cortar o mal pela raiz.
Fico feliz que tenha compreendicdo o ponto central dessa questão tão espinhosa.
Beijos
Joeldo

Mari Amorim disse...

Olá Joeldo,
pertinente este tema.Mas sabemos,que os tubarões ficam sem punição,enquanto os peixes repassam e os peixinhos absorvem,e isso não é só Brasil,é mundial.Infelizmente caímos,na tarrafa da falta de valores,nos "ismos"da falta de amor, e responsabilidade.Parabéns!
Boas energias
Mari

joeldo disse...

Mari,
Acho que isso está começando a mudar.
Tudo é lento e gradual, e não é porque a maioria dos tubarões continua à solta, que vamos abolir as leis e permitir que o tráfico impere.
Lembre-se que os peixinhos de hoje são os tubarões de amanhã.
É plantando a sementinha que colhemos bons frutos.
Joeldo