sexta-feira, 4 de junho de 2010

Há Pragas que vêm para Bem

[imagem: joio em meio ao trigo - ou vice-versa]


Vejo que, na Alfândega, o mato tomou conta. Aqui está parecendo o sítio onde moro. Mas para tudo tem jeito - Contrato os serviços de Renato, nosso diligente jardineiro, e também porteiro da Alfândega, para aparar todo o capim, limpar o terreno, refazer os caminhos, erradicar as pragas. Assim a Alfândega ficará bem.

Falando em pragas, emendo uma história digna de nota. Certa passageira desembarcou pela manhã, trazendo nada menos que um trio de computadores portáteis. Isso entre outras bugigangas. Como é frequente por aqui, "esqueceu-se" de fazer a declaração dos bens.

Mas essa passageira era diferente.

- O senhor há de convir que eu respeito as leis de Deus. Sou dizimista... Os dizimistas fazem tudo em honra e glória ao Senhor [com S maiúsculo...] - disse algo parecido, enquanto eu contava a bagagem.

Jesus, quando foi tentado pelo Diabo, usava as Escrituras para se defender. Eu, apesar de já ter lido a Bíblia toda, sou péssimo para guardar capítulos e versículos. Mas tentei emendar algo. Arrisquei:

- Minha senhora, na Bíblia está escrito que todo cristão deve estar sujeito às autoridades superiores, pois toda autoridade vem de Deus. Assim, a senhora deveria seguir as leis do País. Declarar seus bens também é uma forma de obedecer a Deus. - Defendi, com ares de pastor.

- Mas onde está escrito isso? - Interpelou a passageira, revoltada.

- Acho que é Romanos alguma coisa - chutei.

- Tudo bem - convenceu-se a mulher - reconheço que errei. Mas o que o senhor está fazendo comigo é uma injustiça.

- Quem é injusto, a lei ou quem a faz cumprir? - Rebati de pronto.

Filosofias à parte, continuo contando item por item. Perfumes, relógios, coisas sem uso. A mulher solta mais esta:

- Olha eu não sei de nada, mas o senhor trate de contar tudo certinho. Pois qualquer erro que cometer, Deus virá pessoalmente cobrar do senhor, no final da sua vida. Ele [aqui com E duplamente maiúsculo, por causa do ponto final] fará isso para todos os erros que cometer no seu trabalho aí.

Pronto. Rogaram-me uma praga. O que faço? Meus pensamentos entram em colapso. E se eu errar por cinco dólares? No juízo final, como isso conta? E o perdão? Ele existe para quem trabalha sem dormir, como nós?

- Senhora, "me dá licença" que eu vou ali conversar com Deus.

Ela me olhou, espantada. Saí do recinto, pelo desembarque. Fui ao banheiro, à guisa de lavar o rosto. Mas não fui onde habitualmente vou, ao lado do Duty Free. Em vez disso, fui no da parte externa, perto do ponto de ônibus. Assim, mudaria de ares e não seria abordado por mais ninguém. Lavei o rosto e comecei a conversar com Deus. Ele [de novo com E duplamente maiúsculo] nem me esperou terminar de falar, em pensamento, e já respondeu:

- Acho melhor você parar de dar papo para essa passageira. Ela está cansada, estressada e a coisa pode se complicar.

Confesso que fiquei surpreso com a resposta dEle. Foi bem prático, coloquial. Achei que ia me citar algum versículo, dar-me um sermão, ou talvez mandar alguma mensagem que pudesse transmitir a ela. Algo mais eloquente, quem sabe. Mas foi só aquilo mesmo. Poderia ser que Ele estivesse ocupado com coisa mais importante, e o caso ali não era nada para alguém se aprofundar. Muitas coisas têm soluções mais simples do que a gente imagina.

Fiz o que Ele mandou, enfim. A mulher, notando a minha mudança de comportamento, quis saber o que aconteceu. Falei a ela o que o Criador me disse. Ela, aos poucos, foi se acalmando. Como o imposto seria pago pela irmã, pediu meu número de telefone pessoal e e-mail, para que pudesse me avisar sobre o pagamento, o qual chegaria a mim por correio eletrônico. Não vi problemas em fornecer-lhe esses dados. Assim, o imposto foi pago e ela retornou para buscar as mercadorias:

- Obrigada por tudo. O senhor foi muito gentil e me atendeu bem. Peço desculpas pelo que lhe falei. Deus o abençoe, e à sua família. Sei que muita gente passa por aqui, mas de mim sei que o senhor [com s minúsculo, para evitar ambiguidades] não se esquecerá.

Realmente, não me esqueci mais daquela senhora. Só Deus mesmo [com D maiúsculo] para me livrar daquela situação, tocando o coração dela e fazendo com que uma praga como aquela se revertesse para bem.

7 comentários :

Lygia disse...

Oi Joeldo!

Que delícia de história, como sempre. O título é perfeito. Apesar de Deus ter se mostrado um pouco irritado com a sua preocupação (ou seria com a hipocrisia da tal senhora?rsrs)deixou claro que mais vale o trabalho árduo não é? Só tenho um detalhe a discordar... Não foi o coração dela que teve o toque de Deus, mas o seu. Tudo só se reverteu para o bem porque você assim se comportou.
Ah! E não se preocupe mais com nenhum tipo de praga. Você tem um Anjo da Guarda forte demais....
Prabéns!
Um beijo grande.
Lygia

joeldo disse...

Oi meu Anjo da Guarda... Ainda bem que tenho você aqui para me certificar que nenhum texto fica sem ser lido... E nenhuma praga cola... rs
Obrigado por comentar. Continuo achando que Deus tocou o coração da moça, ainda que através de mim.
Se houve hipocrisia, no entanto, não cabe a mim julgar e sim a Ele.
Beijo grande...
Joeldo

Tatiane MG disse...

Oi Joeldo...

adorei a história! Tenho certeza que Deus tem tocado muito em sua vida! Ele age como o Renato...limpando, arrumando, cuidando, deixando a passagem mais bonita!
Ainda bem que Ele te livrou daquela praga, e espero que também de todas as outras que apareçam (não só) na alfândega do fim do mundo!
Fique certo de que seus textos sempre serão lidos, não só pela Lygia, mas por mim também!
Parabéns...mais uma vez!
Beijos...

joeldo disse...

Tatiane,

Deus é um jardineiro que não nos cobra nada, apenas precisa da nossa permissão para agir.

As ervas daninhas têm que existir, para que possamos dar maior valor aos frutos da terra.

Fico feliz em ter também a sua leitura. O que importa mesmo é a qualidade, e não a quantidade dos visitantes que vêm aqui.

Beijos
Joeldo

Renato Mudado disse...

Oi Joeldo.
O "bicho grilo" deu-me a dica sobre seu blog.
Gosto muito de histórias e você é perfeito na arte de contá-las.
Um grande abraço,
Renato Mudado.
PS. Por favor, nada de "meu anjo".

Pedro Brasil Jr disse...

Caro Joeldo:
Cheguei aqui por acaso e gostei muita das suas narrativas. Desta em especial, porque está cada vez mais raro a gente encontrar algo parecido, que nos lembra saudosos escritores. Como você mesmo disse para alguém ai, vale mesmo mais a qualidade do que a quantidade de leitores. Mas o importante é saber que alguém leu e parou para pensar.
Felicidades ai e grandioso 2012.

joeldo disse...

Renato,
Parece que minha resposta a você foi apagada, então respondo novamente.
Obrigado por sua leitura e apreciação, sempre muito bem vinda.
Fique tranquilo que o único anjo por estas bandas é a Lygia Bovo.
Abraços
Joeldo

Pedro,
Obrigado por sua leitura, fico feliz que minhas histórias despertaram em você o gosto pela leitura. Isso me faz feliz.
É pena eu não ter atualizado o blog, mas ando pensando seriamente em fazê-lo.
Abraços e seja bem vindo
Joeldo