sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Lencinhos de Quito




Início de plantão. Naquele dia, a dupla composta por mim e Marcos viria render o trio Emerson, Hélio e Maria Elena. Após os cumprimentos, Emerson nos dá o aviso:

- Tem uns equatorianos aí, carregados de artesanato, em quantidade que configura destinação comercial. Pegamos alguns no meu plantão passado. As mercadorias ficaram retidas. É bom ficar atento.

É sempre bom dar ouvidos aos avisos de Emerson. Fiquei imaginando como seriam esses cidadãos. Talvez baixinhos, com feições indígenas, bonitos, feios? Será que são mal-educados? E esses artesanatos, no que consistiriam? Fiquei imaginando uns barquinhos de madeira, sei lá. Sempre que tento pensar em artesanato, penso em barquinhos de madeira. Deve ser trauma da feira Hippie, à qual minha então esposa me obrigava a acordar às oito da madrugada do domingo para ir levá-la, em tempos idos. Acho que, por causa do sono, eu via tudo como se fossem barquinhos de madeira. Uns toscos, outros polidos, em fileiras intermináveis.

As lembranças da minha infância conjugal se esvaem rapidamente, quando eu e Marcos descemos para atender ao desembarque do voo da madrugada, vindo de terras caribenhas. E não é que são eles que estão lá, os próprios - baixinhos, indígenas, inconfundíveis - a desembarcar com as tais artesanías?

Pois bem. Eis que abrimos as malas. Para minha decepção, não são barquinhos, e sim, echarpes. Milhares delas. Todas na mesma cor, no mesmo padrão. Meia centena de malas povoam as bancadas da Alfândega, todas elas abarrotadas de uma coisa só.

¿Cuál es la destinación de las mercancías, señor? - cometo a frase em um portunhol macarrônico, dirigindo-me aos latinos, num esforço inconsciente para fazer o "c" de "mercancías" soar como um "th" inglês, pero olvidandome que isso só se faz em Madrid.

- Ellas son producidas por nosotros, llegamos aqui para vender nuestra propia producción. - tentam, com isso, esquivar-se os muambeiros.

- Pero la cantidad caracteriza la destinación comercial de las mercancías, lo que no es permitido. Tenemos así que retenerlas. - dou, assim, o veredicto, esquecendo-me ademais que, se são "mercancías", é óbvio que sua destinação é "comercial". Mas, vamos lá, são cinco da manhã e o cérebro já não funciona a contento. Ainda mais em espanhol.

Neste momento, os latinos começam a protestar. Tentam insistir com Marcos, o supervisor. Ele não cede, e se irrita. Ameaça chamar a polícia. Eles param. Agora vêm até mim.

- Señor, por favor, nosotros dependemos de la venta de las artesanías para comprar nuestro pasaje de vuelta.
- Es un problema de ustedes - vocifero, deixando toda a minha compaixão na tigelinha da varanda de casa, onde dou comida para Bono Vox, meu cachorro.
- ¿Usted tiene hijos? - intercede uma jovem senhora com ares de Yanomami, na intenção óbvia de tocar meu pobre coração, enquanto amamenta a criança que está em seu colo.
- Sim, minha senhora, eu tenho hijos [àquele ponto, já não me esforçava mais para me fazer entender no meu portunholês] só que eu jamais mandaria meus hijos pra tão longe, um país que eles não conhecem, com mercadorias ilegais, e sem a certeza de que voltariam sãos e salvos.

Não teve jeito. Todas as malas foram retidas. É complicada a situação daqueles jovens, aparentemente pessoas de boa índole, induzidos a transportar mercadorias em situação irregular, aliciados por contrabandistas profissionais. Gostaria muito de poder ajudá-los, mas tudo o que podia fazer naquele momento é cumprir a Lei.

16 comentários :

Lygia disse...

Meu querido!!!

Até que enfim um acontecimento que mereceu registro!!! Que venha mais contrabando!!!! kkk
Deve ser muito difícil cumprir a lei quando se pensa no lado humano não é? Pelo menos esses sonhavam em apenas vender seu artesanato, como tantos que aqui mesmo do Brasil sonham com uma vida melhor para si e seus filhos. Pensar nos filhos...Isso derrete até o mais "impaciente" dos fiscais... que entre tantas qualidades é um pai maravilhoso...
Mais uma vez um texto primoroso...
Parabéns!

Beijos

Lygia

joeldo disse...

Oi Lygia,
O contrabando pode até vir, mas de nós não passa...rs
Realmente, falar nos filhos seria uma maneira de tocar o coração até mesmo do mais impaciente dos seres. Não fosse utilizar a desculpa dos filhos para acobertar a própria pilantragem. Em que pesem as boas intenções daqueles indivíduos, acredito que a verdadeira dedicação pelos filhos está em encorajá-los a desempenhar atividades honestas.
Beijo grande
Joeldo

Tatiane MG disse...

Adorei poeta! Que texto mais gostoso! Fiquei tentando te imaginar falando portunhol! rsrsr
E que pecado, vc dizer que sua generosidade ficou na varanda da tua casa!
Não consiguí imaginar, neste caso, como aplicar a lei, sem prejudicar os pobres baixinhos!
Mas como diz uma amiga...são ossos do orifício!! rsrsr
(perdoe a brincadeira!).

Fred Matos disse...

Até que enfim acabou a greve da "Alfândega do Fim do Mundo".
Bom te ler, Joeldo.
Ótimo domingo
Abração

Fabi disse...

Oi...rs

Os seus textos com as histórias da alfandêga do fim do mundo fazem realmente muita falta... Acho que como eu, todos devem saber de cor os textos antigos de tanto reler.
E como diz a Tatiane, melhor do que ler essas histórias, só mesmo te ouvindo contar...
Tomara que os próximos não demorem tanto...
Muitos beijos!
(L)
Fabi

joeldo disse...

Tatiane,
Eu falando portunhol - pode acreditar - é a coisa mais hilária deste planeta. Mais ainda porque fico tentando imitar o sotaque truncado deles. E pasme, já consigo
me fazer entender...
Quanto à generosidade, apesar do que disse no texto, ela não é esquecida nesses momentos.
Nossos pais são generosos conosco quando nos educam, ainda que de uma forma dura. Tenho certeza que aqueles indivíduos aprenderam a lição.
Beijo grande
Joeldo

Fred,
Só tenho a agradecer a atenção e constante presença por aqui.
Forte abraço, amigo
Joeldo

Fabiana,
Fico muito feliz em saber que tenho sido lido mesmo na minha ausência...rs
Vou tentar demorar menos...
Beijo...
(L)

Márcia disse...

Saudades de Você!
E adorei saber que tem um cachorro e que o nome dele é bono..kkk
Bjus

joeldo disse...

Márcia, saudades suas também...
Fico feliz em saber que continua por aqui.
Beijão

Angelica Amorim disse...

Olá,queridão!!!
Ufa,que bom!!!
Concordo,com você referente a verdadeira dedicação pelos filhos, está em sua formação de caráter.
Os valores quando bem passados e assimilados,são eternos.
grande beijo,
Gekila

joeldo disse...

Olá, Geka,
Andava com saudade dos seus comentários por aqui.
Obrigado pela lúcida e sensata observação. Os filhos são tudo.
Beijão
Joeldo

Katia Cristina disse...

Olá Joeldo,
que saudades de ler seus textos, sua presença faz muita falta pra todos nós.Seu texto tem uma leveza que me fez sentir como se estivesse vivenciando a cena, e além de tudo nos faz relembrar que temos que ser caridosos sim, mas não passando por cima da lei, nem dando jeitinhos, pois foi com tanto jeitinhos que estamos sem saida na realidade que vivemos.
Beijos lindo!!!!!!!!!


Katia Cristina

cristinasiqueira disse...

Interessante!

Boa leitura nesta alfândega do fim do mundo.

Gostei.

Beijos,

Cris

joeldo disse...

Katia,
Desculpe-me a demora em repondê-la.
Muito pertinente o seu comentário. Já passou a fase dos jeitinhos, precisamos ser um país de verdade.
Beijos

Cristina,
Muito grato pelo seu comentário e apreciação do texto.
Venha mais vezes.
Beijos,
Joeldo

Unknown disse...

Oi joeldo,foi o primeiro texto que li, mais gostei muito adorei a parte que sua (esposa) te acorda as 8:00 da madrugada se me permite vou estar sempre passando por aqui. beijos ate o proximo.

Fred Matos disse...

Querido Joeldo,
Não obstante a minha implicância com o uso comercial do "espírito natalino", não tenho como escapar da influência que a data exerce sobre o meu emocional que ainda teima em crer que a humanidade não é caso perdido e que podemos construir um mundo mais justo, sem violências e sem preconceitos. Em suma: sou um ingênuo assumido.
Sendo assim, é inevitável que venha para deixar os meus votos sinceros de que você tenha um feliz natal e que o ano novo não seja apenas uma nova página no calendário, mais um marco de mudança que inaugure uma nova era de paz e felicidades para todos e que possamos realizar todos os nossos melhores sonhos e projetos.
Felicidades.
Grande abraço

Lygia disse...

Olá Joeldo...
Que pena que novamente você está demorando tanto a nos brindar com novos textos ou poemas. Ler você faz falta!
Desejo um lindo ano novo, fértil de idéias e inspiração, esperando poder ter novamente seus escritos, emocionantes, engraçados, inteligentes...
Tudo de muito bom na sua vida.
Beijos
Lygia