terça-feira, 14 de julho de 2009

Pôr do Sol na Alfândega




Gosto da vivacidade com que Magalhães descreve certas imagens. Experiente, sabe lidar com situações que são tão corriqueiras quanto adversas. É é assim que nos conta: com brilho no olhar, barba bem aparada e cabelos que denotam a extensão da sua juventude. São casos comuns e tristes, mas que também fazem parte do dia-a-dia de uma Alfândega. Eu e Adriana, fiscal novata na área, escutamos com atenção.

Pôr do sol de um dia qualquer. Recebemos um telefonema da transportadora. Uma urna nos espera. Sentimos uma tristeza que não é nossa. Chega, ansiosa, a família, para receber quem já se foi. É quando acontece o primeiro impacto: Seu ente querido não é mais um passageiro. Os idos, quando chegam, o fazem pelo terminal de cargas. E é extensa a caminhada até lá.

Chegamos ao terminal. Empilhadeiras, carros e caminhões parecem ignorar o caráter solene do momento. Mandamos parar as máquinas. A família chega em seguida, triste como era de se esperar, mas também esbaforida, faminta. Vinda, em muitos casos, do interior na véspera, tendo amanhecido e passado o dia ali.

Chegamos, então, até o corpo. Urna lacrada. Lançamos um olhar básico, discreto. Verificamos a documentação. Tudo em ordem. Liberamos, enfim. Há mortos que passam semanas até a volta ao país natal, devido às dificuldades com o transporte. Na maioria dos casos, as condições não são nada favoráveis: Se a família não dispõe de recursos, o governo estrangeiro fornece uma urna de alumínio padronizada, feia. Mas o pior de tudo é o uso político.

Originários de algum micromunicípio do interior, em muitos casos os próximos do defunto contam com a pseudoajuda das autoridades locais. E é aí que fazem a festa com o sofrimento alheio. Vereadores, assessores de prefeitura e câmara e, muitas vezes, os próprios prefeitos vêm calcar-lhes as costas, fazendo de palanque o que deveria ser um esquife. Assumindo a responsabilidade pelo transporte do féretro, sentem-se no direito de proferir discursos intermináveis, em busca de votos, como se a dor da família não bastasse.

Despedimo-nos, então, da família, transportadores, despachantes. Todo mundo com um ar solene, quase ensaiado. É um alívio, para os que reconhecem o costume último de enterrar-se os que já partiram.

Magalhães termina a história, com o mesmo sorriso de antes. Vou descansar antes do voo das 3 da manhã. Adriana vai para a sala do registro, onde se declaram os bens levados na saída. O aeroporto parece propositadamente vazio. Todas aquelas histórias ainda parecem impressionantes para nós, novatos. Adriana não estranha o silêncio na sala. Passa pelo balcão, leva um café para a copinha. Requenta-o no microondas. Na volta, porém, algo no balcão a deixa paralisada:

- Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhh !!!

Eram apenas três passageiros, que entraram na sala sem fazer nenhum barulho. Eles riem. Adriana se recompõe. Rimos de tudo, enfim. É a nossa vida, penso.

13 comentários :

Tatiane MG disse...

Fico feliz que tenha voltado a escrever na alfândega! Como minha mãe costuma dizer... "a morte é a única certeza que temos na vida!" Mas infelismente ela nem sempre é generosa com sua chegada...as vezes ela é cruel, e chega aos poucos, devagar, e vai bebendo aos poucos o resto de vida que resta. Sinceramente penso que morremos a cada dia que passa, não é mais um dia... e sim menos um dia!
Sucesso poeta!!!

Fred Matos disse...

Até que enfim um post novo, Joeldo.
Muito bom, como sempre.
Grande abraço

Fabi disse...

Que legal você de volta!

O texto tem um peso fúnebre, que não é é comum nos reencontros, mas isso não faz menos rico que os outros tantos já escritos aqui.
Afinal, esse tipo de reencontro também faz parte da rotina de todos vocês.
Tomara que você não desapareça novamente...rs...

Beijos
(L)

Angelica Amorim disse...

Olá!!!!
que xaudadeeeeeeee
nem vou comentar o texto,porque seja que estilo for,são maravilhosos..
tomara que não pare,o Alfândega não merece.Te amamos.
Gekila

joeldo disse...

Tatiane,
O texto é menos sobre a morte, e mais sobre o descaso que a vida faz dela. Que as pessoas de bem possam agir com mais respeito, tratando com dignidade os idos e os seus.
Beijo grande

Fred,
É muito bom ter você por aqui. Depois de tanto tempo, ter sua leitura é sempre um presente.
Forte abraço

Fabiana,
Acredito que nem mesmo a morte é definitiva.
Muito bom ter você aqui também.
Beijo
(L)

Angélica,
Fico feliz em vê-la atenta, vou procurar aparecer por aqui com mais frequência.
Beijão.

Lygia disse...

Oi querido!

Fico muito feliz em vê-lo de volta. Ler você é um prazer enorme. Sempre fico indignada com a capacidade dessas pessoas de se aproveitar até da dor de uma família para sua promoção. Será que isso só acontece no Brasil ou a classe política é igual em todo lugar? Por outro lado ri muito com o susto de sua colega. Você descreve as cenas com tal riqueza que podemos ver na imaginação a expressão e o grito diante das pessoas, que não devem ter entendido nada... rsrsrsrsrs
Adorei!!!!! Você é do mal menino...
Obrigada por essa volta.
Beijos

Lygia

joeldo disse...

Lygia, meu Anjo
Seu comentário é como um afago, dá a sensação de que você esteve aqui no
Fim do Mundo e presenciou tudo...
Beijos...

Katia Cristina disse...

É bom te ver escrevendo de novo, como sempre muito bem, ainda mais abordando um tema tão dificil e tão real em nossas vidas, mas jamais aceito por nós - a morte, e que as vezes é tratada tão friamente por alguns.
Parabéns.
Um beijo.
Katia Cristina

Luiza Helena disse...

Estava com saudades! Suas palavras acendem a esperança que dias melhores virão!
Bjs.

Tuamusa disse...

A dor da perda é equivalente a crença daqueles que acreditam que a vida começa e termina aqui.Estamos aqui por um momento, apenas.Mas, acredito que qualquer que seja nossa trilha, há outros mundos, outras vidas.Já perdi tanta gente amada, aprendi que não há um fim, há novos caminhos.

Fred Matos disse...

Joeldo, meu amigo.
Onde você se escondeu?
Faz favor de publicar, aparecer, dar notícias.
Abração

Fred Matos disse...

Parece que a Alfândega está em greve. Espero que reabra logo: há muita muamba entrando sem fiscalização.
Abração, Joeldo

Red Rose disse...

Jô,

Cade você que deixou de nos brindar com suas dissertações sobre as coisas da vida, que passam desapercebidas pela maioria dos mortais?
Não abandone o dom da escrita que tão bem representa em cada palavra publicada.

Beijos no coração